Cérebro e comportamento
Eric. R. Kandel
Este texto é uma tradução feita pela Profa. Maria Carolina Doretto do capítulo "Brain and Behavior", do livro Principles of Neural Sciences, Second Edition, Eric R. Kandel e James H. Schwartz, Elsevier, 1985.
A chave filosófica da ciência neural moderna é que todo comportamento é um reflexo da função cerebral. De acordo com esta visão - uma visão que é sustentada pela maioria dos neurobiologistas e que se tentará documentar neste texto - a mente representa uma quantidade de funções desempenhadas pelo cérebro. A ação do cérebro está relacionada não somente com comportamentos muito simples tais como caminhar e sorrir, mas também com funções elaboradas tais como sentir, aprender e escrever um poema.Como corolário, os distúrbios do afeto (emoções) e da cognição (pensamentos) que caracterizam as doenças neuróticas e psicóticas podem ser resultado de distúrbios no cérebro.
O cérebro é formado por unidades individuais - as células nervosas (neurônios) e as células gliais. A tarefa das ciências neurais é explicar como o cérebro organiza estas unidades para controlar o comportamento e como, por sua vez, o funcionamento das células constituintes do cérebro de um indivíduo é influenciado pelo comportamento de outra pessoa bem como por uma grande quantidade de fatores ambientais. Nosso propósito neste capítulo é proporcionar uma visão geral introdutória. Neste capítulo serão consideradas as estratégias utilizadas pelo cérebro humano na representação da linguagem, o comportamento cognitivo mais elaborado. Examinaremos o córtex cerebral, a parte do cérebro que sofreu a maior expansão na evolução recente e que está relacionada com aspectos mais elevados do comportamento. Será ilustrado como grandes grupos de neurônios estão organizados especialmente dentro do sistema nervoso e como, ao nível regional, mesmo o comportamento mais complexo pode ser localizado por uma família de áreas específicas do cérebro.
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Na inter-relação cérebro e comportamento duas visões alternativas têm predominado: a “visão de campo agregado do cérebro” e o conexionismo celular. As visões atuais das células nervosas do cérebro e do comportamento são relativamente recentes e surgiram da fusão, no final do século dezenove, de quatro tradições experimentais: neuroanatomia, fisiologia, farmacologia e bioquímica e a psicologia.
A complexidade anatômica do tecido nervoso não foi analisada antes da invenção do microscópio composto. Até o século dezoito, pensava-se que o tecido nervoso tinha uma função glandular, devido à proposição de Galeno, de que os nervos são ductos, transportando fluidos secretados pelo cérebro e pela glândula espinhal para a periferia do corpo. A histologia do sistema nervoso tornou-se uma ciência moderna no século dezenove, culminando nas investigações de Camilo Golgi e Santiago Ramón y Cajal, que dividiram o sexto Prêmio Nobel em Medicina e Fisiologia em 1906. Golgi desenvolveu os métodos de impregnação pela prata que permitiram a visualização microscópica de todo o neurônio com todos os seus processos: o corpo celular, os dendritos e o axônio. Utilizando a técnica de coloração de Golgi para marcar células individuais, Cajal mostrou que o sistema nervoso não é uma massa de células fundidas, dividindo um citoplasma comum, mas uma rede altamente intrincada de células individuais. No curso deste trabalho, Cajal desenvolveu algumas das chaves conceituais e muito do suporte empírico para a doutrina do neurônio - o princípio de que o sistema nervoso é formado de muitos elementos sinalizadores individuais, os neurônios.
A Neurofisiologia, a Segunda disciplina fundamental para a visão moderna da função nervosa começou no século dezoito quando Luigi Galvani descobriu que as células nervosas de animais produziam eletricidade. Durante o século dezenove os fundamentos da neurofisiologia foram estabelecidos por Emil Dubois-Reymond e Hermann Von Helmholtz, que descobriram que as células nervosas usam suas capacidades elétricas para sinalizar informações de uma para outra. A terceira disciplina, a farmacologia e bioquímica começou no final século dezenove com Claude Bernard, Paul Erlich e John N. Langley, cada um dos quais estabelecendo que as drogas interagem com receptores específicos na superfície das células, a
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percepção que se tornou a base dos estudos modernos da transmissão sináptica química.
A Psicologia, a quarta disciplina importante para relacionar o cérebro com o comportamento, tem a história mais longa. No Ocidente, as idéias sobre a mente e a alma derivam da antiguidade. O comportamento, manifestação da mente no mundo físico, não foi abordado cientificamente até o século dezenove, quando o trabalho de Charles Darwin na evolução do comportamento permitiu à Psicologia desenvolver-se como uma disciplina independente da filosofia para tornar-se experimental.
A mistura da anatomia, fisiologia e o estudo do comportamento começou com o estudo dos frenologistas, conduzidos pelo médico e neuroanatomista vienense Franz Joseph Gall. No começo do século dezenove Gall tinha presciência para avaliar que as funções da mente são executadas pelo cérebro. Ele postulou que o cérebro não é um órgão unitário, mas uma coleção de pelo menos 35 domínios ou centros (outros foram posteriormente acrescentados), cada um correspondendo a uma função mental específica. Gall achava que mesmo a mais elaborada e abstrata destas funções - generosidade, amor maternal, discrição - eram separadamente localizadas em áreas específicas do córtex cerebral. Gall e os frenologistas acreditavam que o centro para cada função mental poderia desenvolver-se e aumentar de tamanho como resultado do uso, da mesma maneira que o tamanho de um músculo é aumentado pelo exercício. O crescimento de cada centro poderia dar origem a protuberâncias específicas na superfície da cabeça e pensava-se que a localização destas ondulações na superfície do crânio refletia o desenvolvimento de regiões específicas do cérebro, subjacente. Correlacionando então a personalidade do indivíduo com as proeminências em seus crânios, Gall pensava em desenvolver uma nova e objetiva ciência para descrever o caráter, baseado na anatomia do cérebro - a personologia anatômica.
Esta extrema e fantasiosa visão era um alvo fácil para as críticas de Pierre Flourens, um neurologista francês do século dezenove. Removendo várias porções de cérebro de animais de experimentação, ele tentou determinar a contribuição específica de diferentes áreas do sistema nervoso para o comportamento. Flourens concluiu que as funções mentais particulares não são localizadas, mas que o cérebro e, em especial, o córtex cerebral, age como um todo, para cada função mental. Ele propôs
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que qualquer parte do córtex cerebral é capaz de realizar todas as funções corticais. Lesões em uma área específica do córtex afetariam, portanto todas as funções corticais igualmente. A rápida e completa aceitação geral desta crença (posteriormente denominada de “visão de campo agregado do cérebro”) era baseada só parcialmente nos resultados experimentais de Flourens. Ela também representava uma reação filosófica contra a visão extremamente localizacionista proposta pelos frenologistas.
Na metade do século dezenove J. Hughlins Jackson, um neurologista britânico, destruiu a teoria dos campos agregados defendida por Flourens. Os estudos clínicos de Jackson sobre epilepsia focal (convulsões que surgem em uma parte do sistema nervoso central) mostraram que diferentes atividades motoras e sensoriais estão localizadas em diferentes partes do cérebro. Estes estudos foram mais tarde elaborados sistematicamente pelo neurologista Carl Wernicke e por Cajal numa visão alternativa da função cerebral denominada conexionismo celular. De acordo com esta visão, os neurônios são unidades sinalizadoras do cérebro e eles conectam-se uns aos outros de maneira precisa. Wernicke mostrou que o comportamento é mediado por regiões específicas e através de vias particulares que conectam estruturas sensoriais e motoras.
A história de disputa entre os proponentes das visões do campo agregado e do conexionismo celular da função cortical pode ser mais bem ilustrada pela análise da linguagem, a mais alta e mais característica função humana. Antes de considerar os estudos clínicos e anatômicos relevantes relacionados com a localização da linguagem, vamos considerar rapidamente a estrutura do cérebro.
Regiões do cérebro são especializadas para diferentes funções
O sistema nervoso central, que é bilateral e essencialmente simétrico, consiste de seis partes principais:
1 - A medula espinhal, a parte mais caudal do sistema nervoso central, recebe informações da pele, articulações e de músculos do tronco e membros e envia comandos motores para movimentos, sejam eles reflexos ou voluntários.
2 - O bulbo é a extensão rostral da medula espinhal.
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3 - A ponte e o cerebelo (que se localiza atrás da ponte) são rostrais ao bulbo. O cerebelo está relacionado com a modulação da força e amplitude do movimento.
4 - O mesencéfalo localiza-se rostralmente à ponte entre o que é chamado cérebro posterior (bulbo, ponte e cerebelo) e o cérebro anterior ou prosencéfalo (o diencéfalo e o córtex cerebral).
O bulbo, a ponte e o mesencéfalo, referidos coletivamente como tronco cerebral, mediam uma ampla variedade de funções. O tronco cerebral contém vários conjuntos de corpos celulares chamados de núcleos dos nervos cranianos. Alguns destes núcleos recebem informações da pele e dos músculos da cabeça e também grande parte da informação dos sentidos especiais, da audição, equilíbrio e gosto. Outros núcleos controlam a saída motora para os músculos da face, pescoço e olhos. Outra estrutura chave no tronco cerebral é a formação reticular difusa, a qual é importante na determinação dos níveis de vigília e de alerta.
5 - O diencéfalo contém duas estruturas chave de retransmissão. Uma delas, o tálamo, processa a maior parte da informação que chega ao córtex cerebral a partir do resto do sistema nervoso central. A outra, o hipotálamo, regula a integração autonômica, endócrina e visceral.
6 - Os hemisférios cerebrais consistem dos gânglios basais e córtex cerebral circundante. Ambos, o córtex e os gânglios basais estão relacionados com funções perceptuais, cognitivas e motoras superiores.
A revolução ocorrida nas modernas técnicas de imagem tem tornado possível visualizar estas inter-relações no cérebro humano vivo.
Assim, diferentes regiões do cérebro são especializadas para diferentes funções. Uma das razões pelas quais esta conclusão iludiu Flourens e outros pesquisadores por muitos anos reside em outro princípio organizacional do sistema nervoso, conhecido como processamento em paralelo. Como veremos adiante, muitas funções sensoriais, motoras e mentais são levadas a efeito por muito mais que uma via neural. Quando uma região ou uma via é lesada, outras freqüentemente são capazes de compensar parcialmente a perda, obscurecendo, portanto a evidência comportamental para a localização. Entretanto, a precisão com que certas funções
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são realmente localizadas emerge claramente de uma consideração a respeito da linguagem, à qual retornaremos a seguir.
As funções cognitivas podem ser localizadas dentro do córtex cerebral.
Para compreender como a linguagem está localizada, nós temos que considerar primariamente o córtex cerebral. O córtex de cada um dos dois hemisférios é dividido em quatro lobos anatomicamente distintos: o frontal, o parietal, o occipital e o temporal. Estes lobos são especializados em sua função. O lobo frontal está amplamente relacionado com o planejamento e com movimento, o parietal com sensação somática, o occipital com a visão e o temporal com a audição, bem como a aprendizagem, memória e emoções. Cada lobo tem circunvoluções características e dobras (um antigo artifício biológico para aumentar a área de superfície). As cristas das circunvoluções são denominadas giros. As ranhuras são chamadas sulcos ou fissuras. Os giros e sulcos mais proeminentes são semelhantes entre um indivíduo e outro e tem nomes específicos (giro pré-central, sulco central e giro pós-central).
A organização do córtex cerebral é caracterizada por duas importantes particularidades. Primeiro, cada hemisfério está relacionado primariamente com processos motores e sensoriais do lado contralateral do corpo. A informação sensorial que entra na medula espinhal do lado esquerdo do corpo cruza para o lado direito do sistema nervoso (seja ao nível da medula espinhal ou mais acima ao nível do tronco cerebral) antes de ser conduzida ao córtex cerebral. Da mesma maneira, as áreas motoras em um hemisfério exercem controle sobre os movimentos da metade oposta do corpo. Segundo, os hemisférios, embora muito semelhantes não são completamente simétricos em suas estruturas, nem equivalentes em suas funções.
Muito do que sabemos sobre a localização da linguagem normal vem de estudos de afasia, um distúrbio da linguagem que é mais comumente encontrado em pacientes que sofreram oclusão de vasos sangüíneos que fornecem suprimento sangüíneo a uma determinada porção do córtex cerebral. Muitas das importantes descobertas no estudo da afasia ocorreram em rápida sucessão durante a última metade do século dezenove e formam um interessante capítulo da história da psicologia humana. O primeiro avanço ocorreu em 1861 com a publicação de um trabalho científico pelo
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neurologista francês Pierre Paul Broca. Broca descreveu o caso de um paciente que podia compreender a linguagem, mas que tinha perdido a capacidade de falar. O paciente não tinha a deficiência motora convencional. Ele podia pronunciar palavras isoladas e cantarolar uma melodia sem dificuldade, mas não podia falar gramaticalmente. Ele não podia nem formar sentenças fluentes nem expressar suas idéias na escrita. O exame de seu cérebro após a morte mostrou uma lesão na porção posterior do lobo frontal (uma área atualmente conhecida como área de Broca). Broca colecionou a seguir mais oito casos semelhantes, todos apresentando lesões que incluíram esta área. Em todos os casos as lesões estavam localizadas no lado esquerdo do cérebro. Esta descoberta levou Broca a enunciar, em 1864, um dos mais famosos princípios da função cerebral: "Nous parlons avec l'hémisphere gauche!" ("Nós falamos com o hemisfério esquerdo"!)
Broca também notou que todos aqueles com distúrbios da fala por causa de danos ao hemisfério esquerdo eram indivíduos destros e todos apresentavam fraqueza ou paralisia da mão direita. Esta observação por sua vez levou à generalização de que existem relações cruzadas entre o hemisfério dominante e a mão de preferência.
O trabalho de Broca estimulou a mais ampla pesquisa para o locus cortical da função comportamental - uma pesquisa que foi logo recompensada. Em 1870, nove anos após a descoberta inicial de Broca, Gustav Theodor Fritsch e Eduard Hitzig atiçaram a comunidade científica com sua descoberta de que movimentos característicos de um membro podem ser produzidos em cães, estimulando-se certa área do cérebro, o giro pré-central contralateral, à frente do sulco central. Além disso, Fritsch e Hitzig descobriram que existe uma representação cortical para grupos musculares individuais e que uma pequena região do córtex responsável por cada grupo é distante.
O passo seguinte foi dado por Carl Wernicke em 1876. Com a idade de 26 anos (tendo saído da escola médica há somente quatro anos) Wernicke publicou um novo trabalho clássico intitulado "O sintoma complexo da afasia: um estudo psicológico com bases anatômicas". Neste trabalho ele descreveu um novo tipo de afasia, a afasia de Wernicke, que envolve um comprometimento da compreensão mais que da execução (uma má função receptiva, opondo-se à expressiva). Enquanto os pacientes de Broca podiam compreender, mas não podiam falar, os pacientes de
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Wernicke podiam falar, mas não compreender. Wernicke descobriu que este novo tipo de afasia tem uma localização diferente daquela descrita por Broca: a lesão está localizada na parte posterior do lobo temporal na sua junção com os lobos parietal e occipital.
Além de sua descoberta, Wernicke formulou uma teoria da linguagem que tentava conciliar e estender as duas teorias existentes de função cerebral. Os frenologistas argumentavam que o córtex é um mosaico de funções específicas e que mesmo os atributos mentais abstratos estão localizados em áreas corticais únicas, altamente específicas. A escola oposta do campo agregado argumentava que as funções cerebrais não estavam de forma nenhuma representadas topograficamente, mas distribuídas igualmente em todo o córtex cerebral. Wernicke usou suas descobertas e as de Broca, as de Fritch e as de Hitzig para propor que somente as funções mentais básicas relacionadas com atividades perceptuais e motoras simples estão localizadas em áreas cerebrais distintas. Entretanto, as áreas elementares para estas funções simples são interconectadas de várias maneiras. Portanto, de acordo com esta visão, funções mentais mais complexas (às quais se referiam os frenologistas) surgem de interações neurais entre várias áreas elementares perceptuais e motoras e são mediadas por vias que as interconectam.
Estendendo o princípio do mosaico do cérebro numa rede conexionista, Wernicke enfatizou que a mesma função é processada em série bem como em paralelo em diferentes regiões do cérebro, e componentes específicos da função são processados em sítios particulares. Wernicke então formulou as idéias de processamento em paralelo que são proeminentes no pensamento atual.
Wernicke postulou que a linguagem envolve regiões sensoriais e motoras separadas. Ele propôs que a área de Broca controla o programa motor para coordenar os movimentos da boca em fala coerente - uma tarefa para a qual a área de Broca está convenientemente situada imediatamente à frente da área motora que controla a boca, a língua, o palato e as cordas vocais. Ele atribuiu a seleção de palavras, o componente sensorial da linguagem, à área do lobo temporal que ele havia descoberto. Esta área está também convenientemente localizada, sendo circundada pelo córtex auditivo bem como por áreas do córtex (chamadas córtices de associação) que integram aspectos da audição e da visão para a percepção
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complexa. Wernicke formulou então um modelo coerente, embora simplificado de fala que é ainda útil nos dias atuais. De acordo com este modelo, as percepções auditivas e visuais da linguagem são formadas em suas respectivas áreas sensoriais e de associação e convergem para a área de Wernicke, onde elas são reconhecidas como linguagem falada ou escrita. Sem este reconhecimento, a compreensão da linguagem é perdida. Uma vez reconhecida, a representação neural é retransmitida da área de Wernicke para a área de Broca, onde é transformada de representação auditiva (ou visual) em linguagem (falada ou escrita). Sem esta transformação a capacidade para articular a linguagem é perdida.
Utilizando este poderoso modelo, Wernicke previu que outro tipo de afasia é produzido por um tipo de lesão muito diferente das afasias de Broca e de Wernicke: as zonas receptivas e motoras da fala estavam preservadas, mas a via neural que as conecta, o fascículo arqueado na região parietal inferior está destruída. A síndrome resultante, agora denominada afasia de condução, é caracterizada pelo uso incorreto de palavras (parafasia). Pacientes com afasia de condução não podem repetir frases simples, mas podem compreender palavras que são ouvidas e vistas; eles falam fluentemente, mas não corretamente, omitindo partes das palavras e substituindo sons incorretos nas palavras. Eles tem conhecimento de seus erros e sofrem com eles, mas não podem corrigi-los.
Assim, no começo do século vinte existia uma forte evidência de que áreas distintas do córtex cerebral estavam envolvidas em comportamentos específicos. Surpreendentemente, portanto, era a prevalência da visão de campo agregado nesta época. Durante a primeira metade deste século vários dos maiores neurocientistas, incluindo o neurologista inglês Henry Head, o neuropsicólogo alemão Kurt Goldstein, o fisiologista russo Ivan Pavlov e o psicólogo americano Karl Lashley, continuaram a advogar a visão do campo agregado. O mais influente era Lashley, professor de psicologia na Universidade de Harvard. Na tradição de seu predecessor Flourens, ele tentou encontrar o local da aprendizagem, estudando em ratos os efeitos de várias lesões cerebrais na complexa tarefa de aprender a percorrer um labirinto. Lashley não conseguiu encontrar nenhum centro específico para aprendizagem; ao contrário, a severidade da deficiência na aprendizagem produzida pelo dano cerebral dependia da extensão da lesão e não de sua precisa localização. Esta
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descoberta levou Lashley e depois dele, outros psicólogos a concluir que a aprendizagem não possui um locus especial e que portanto não pode estar relacionada a neurônios específicos. Com base em suas conclusões, Lashley reformulou a teoria do campo agregado, numa outra que denominou efeito de massa, a qual minimizava a importância de neurônios individuais e de conexões neuronais específicas. O que é importante para esta visão de ação em massa é a massa cerebral e não a arquitetura neuronal.
Aplicando esta lógica para afasia, Head e Goldstein argumentaram que os distúrbios da linguagem não podem ser atribuídos a lesões específicas, mas que não são decorrentes de injúria de quase qualquer área cortical. Eles afirmaram que a lesão cortical, independentemente do local, faz o paciente regredir de uma linguagem de alto nível simbólico para uma linguagem verbal simples e automática; de uma linguagem abstrata para uma concreta, característica das afasias.
O trabalho de Lashley e de Head foi subseqüentemente reinterpretado. Muitos estudos tem demonstrado que o aprendizado em labirinto, a tarefa usada por Lashley, é inadequado para estudar localização de função porque esta envolve muitas aptidões sensoriais e motoras. Privados de uma aptidão, um animal pode ainda aprender com outra. Além disso uma série de avanços experimentais e clínicos importantes suportam a evidência para localização. No final dos anos 50 Wilder Penfield estimulou o córtex de pacientes conscientes durante cirurgia cerebral para epilepsia, realizada com anestesia local. Para certificar-se de que a cirurgia não comprometeria a capacidade de comunicação dos pacientes, Penfield testava as áreas corticais que sob estimulação produziam distúrbios de linguagem. Estes achados, baseados em relatos verbais de indivíduos conscientes, dramaticamente confirmaram a localização indicada pelos estudos de Wernicke. Além disso, estendendo os achados de Fritsch e Hitzig para seres humanos, Penfield também demonstrou que os músculos do corpo estão representados no córtex cerebral, com grandes detalhes topográficos, o que resultou num mapa formando o homúnculo motor. Recentemente os estudos clínicos de Penfield tem sido estendidos por Norman Geschwind em Harvard, que tem sido pioneiro nos estudos modernos de localização funcional no córtex cerebral humano. Resultados experimentais aplicando técnicas celulares para o sistema nervoso central, tem levado a
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conclusões semelhantes. Por exemplo, estudos fisiológicos ao longo do desenvolvimento tem indicado que células nervosas individuais conectam-se umas às outras de maneira precisa. Como resultado células individuais respondem somente a estímulos sensoriais específicos e não a qualquer estímulo.
Características afetivas e de caráter também são anatomicamente localizáveis
Mesmo à luz da evidência para localização de funções cognitivas relacionadas à linguagem, persistiu a idéia de que as funções afetivas ou emocionais não são localizáveis. A emoção, havia-se afirmado, deve ser uma expressão da atividade de todo o cérebro, a então chamada propriedade emergente. Só recentemente esta visão tem sido modificada. Emoções muito específicas podem ser eliciadas por estimulação de partes específicas do cérebro de animais de experimentação. Entretanto, as três mais dramáticas demonstrações vieram de estudos de pacientes com certos distúrbios de linguagem, pacientes que apresentavam uma forma de epilepsia com origem no lobo temporal, e pacientes com distúrbios agudos de ansiedades (ataques de pânico).
Além dos aspectos cognitivos da linguagem, representados nas áreas de Wernicke e de Broca no hemisfério esquerdo, existe um componente afetivo da linguagem, que consiste na entonação da fala (chamada prosódia), gesticulações emocionais, compreensão prosódica e compreensão da gesticulação emocional. Elliot Ross na Universidade do Texas e Kenneth Heilman na Universidade da Flórida descobriram que estes aspectos afetivos da linguagem estão representados no hemisfério direito, e que sua organização anatômica espelha aquela para a linguagem cognitiva no hemisfério esquerdo. Lesões na área temporal direita, homóloga à área de Wernicke no hemisfério esquerdo leva a distúrbios da compreensão de aspectos emocionais da linguagem. Assim, distúrbios afetivos específicos da linguagem podem ser localizados em regiões particulares do cérebro, e estes distúrbios, denominados aprosodias, podem ser classificados em sensoriais, motores e de condução, da mesma maneira que são classificadas as afasias.
Um segundo indício para a localização do afeto vem de achados de pacientes com epilepsia crônica do lobo temporal que manifestam alterações emocionais características. Algumas destas alterações estão presentes durante as próprias
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crises e são chamadas de fenômenos ictais. Outras alterações estão presentes mesmo na ausência de crises e estes são chamados fenômenos interictais. Entre os fenômenos ictais comuns experimentados pelos pacientes durante crises do lobo temporal estão os sentimentos de irrealidade e de dejà vu (a sensação de ter estado em um lugar antes ou de ter visto um conjunto particular de imagens antes) alucinações visuais e auditivas transitórias, sentimentos de despersonalização, medo ou raiva, delírios, sentimentos sexuais e paranóia. Entretanto, algumas vezes as alterações mais importantes são aquelas presentes em pacientes quando eles não estão tendo convulsões. Estas alterações interictais são interessantes porque elas representam uma alteração crônica na personalidade, uma verdadeira síndrome psiquiátrica.
Um inventário detalhado da personalidade de pacientes com epilepsia do lobo temporal foi compilado por David Bear no Instituto Nacional de Saúde do Estados Unidos. Ele encontrou que muitos pacientes com epilepsia do lobo temporal perdem todo interesse pelo sexo. Esta diminuição do interesse sexual geralmente é paralela com aumento de agressividade social. A maioria dos pacientes também tem um ou mais traços de personalidade característicos; eles podem ser intensamente emocionais, ardentemente religiosos, extremamente moralistas ou carentes de humor.
Bear também encontrou que estas características são correlacionadas com a localização da epilepsia. Pacientes com epilepsia do lobo temporal direito apresentam excessivas tendências emocionais (hiper-emocionalidade). Ao contrário, pacientes que apresentam epilepsia do lobo temporal esquerdo manifestam característica de ideação tais como um sentido de destino pessoal, auto-moralismo e uma tendência para explanação filosófica. Assim, as funções afetivas podem estar localizadas dentro do lobo temporal (embora elas também envolvam outras áreas do cérebro, como será mostrado adiante) e existe assimetria hemisférica para emoção bem como para cognição.
Ao contrário de pacientes com epilepsia do lobo temporal, pacientes com foco epiléptico fora dele, de um modo geral não apresentam anormalidades nas emoções e no comportamento. Bears tem argumentando que as lesões irritativas da epilepsia tem conseqüências opostas àquelas de lesões destrutivas de afasia que Wernicke
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analisou. Enquanto as lesões destrutivas causam perda de função, freqüentemente através de desconexão de áreas especializadas, os processos epilépticos podem provocar atividade excessiva nas regiões afetadas, levando a excessiva expressão da emoção ou a super-elaboração de idéias.
Alguns dos sintomas vistos na epilepsia do lobo temporal são também vistos na esquizofrenia. Entretanto, pacientes epilépticos diferem daqueles com esquizofrenia, no sentido de que pacientes com epilepsia do lobo temporal mostram afeto caloroso (ao invés de frio) tem pensamentos lógicos e são capazes de estabelecer relações inter-pessoais significativas.
Ataques de pânicos são a terceira desordem do afeto claramente definida que tem sido localizada no lobo temporal. Um distúrbio agudo de ansiedade, os ataques de pânico são episódios recorrentes, rápidos e espontâneos de terror, sem causa claramente identificável. Existe um sentido de desastre iminente, acompanhado de disparo do coração e respiração curta e instável. Utilizando-se tomografia de emissão de pósitrons (uma técnica de investigação que permite visualização do fluxo sangüíneo cerebral e alterações metabólicas no cérebro), Eli Robins e seus colegas da Universidade de Washington em Saint Louis, encontraram uma anormalidade circunscrita no giro parahipocampal direito em pacientes com ataques de pânico recorrentes. O fluxo sangüíneo para esta área está anormalmente mais alto que área correspondente do hemisfério esquerdo. Esta anormalidade está presente mesmo quando os ataques de pânico não estão ocorrendo. Assim, uma predisposição a este distúrbio emocional pode ser traçado como uma anormalidade permanente e localizada na anatomia do cérebro.
Estes estudos clínicos e seus correspondentes em animais de laboratório, sugerem que todo comportamento, incluindo as funções superiores mais elevadas (cognitivas e afetivas), é localizável em regiões específicas ou em constelações de regiões dentro do cérebro. O papel da anatomia descritiva é portanto prover-nos com um guia funcional para localização, dentro do espaço neural tridimensional – um mapa para o comportamento. Com base neste mapa nós podemos usar o desempenho comportamental do paciente, como conseguido num exame clínico, para inferir onde as dificuldades estão localizadas.
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Esta discussão nos traz ao ponto final. Porque a evidência para localização, a qual parece tão óbvia, foi repetidamente rejeitada no passado? As razões são tanto históricas quanto científicas. Como nós vimos, antes do trabalho de Pierre Flourens na função agregada do córtex cerebral, os frenologistas haviam já promulgado uma doutrina extrema de localização, a personologia anatômica. A dialética subseqüente entre os antilocalizacionistas do campo agregado e os localizacionistas da conexão celular desenvolveram então uma reação contra a teoria da localização que, embora correta na sua perspectiva, estava errada e além disso era insensata nos detalhes. O conceito de localização que finalmente prevaleceu estava moderado nesta controvérsia e emergiu como muito mais complexo do que Gall poderia imaginar. O que está localizado em regiões distintas no cérebro não é um conjunto de faculdades elaboradas da mente , mas uma grande família de operações elementares freqüentemente executadas em paralelo. Faculdades mais elaboradas derivam da interconexão de muitas regiões cerebrais.
Cientificamente, a teoria da localização foi aceita lentamente porque os clínicos e os neurocientistas estavam relutantes para avaliar que aspectos da função são localizados e quão extensivo é o papel que as representações em paralelo desempenham no processamento da informação pelo cérebro. Muitas funções, particularmente as mentais mais superiores, estão divididas em sub-funções, que são representadas não somente em série mas também em paralelo, de modo que o processamento neural para uma dada função seja distribuído dentro do cérebro e manipulado em vários locais distintos. Cada um destes estágios de processamento representa presumivelmente alguma elaboração diferenciada de uma sub-função particular. Por exemplo, nós já encontramos várias áreas distintas para fala, cada uma relacionada com a elaboração de um determinado componente; muito provavelmente, outras áreas semelhantes estão ainda para serem descobertas. Como resultado do processamento em série e em paralelo, lesão a uma única área não leva necessariamente ao desaparecimento da função; ou, se a função desaparece, ela pode retornar parcialmente porque as partes remanescentes podem tanto assumir a função quanto rearranjar-se para cumprir a tarefa primária. Assim, a base anatômica da localização de funções relacionadas não pode ser vista como uma série de funções ligadas em uma cadeia única, um arranjo no qual todas as funções relacionadas poderiam parar se a cadeia fosse quebrada; ao contrário, as
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funções relacionadas são agora vistas como produto de muitas cadeias distribuídas em paralelo. A quebra de uma única ligação interromperá uma cadeia, mas isto não interferirá permanentemente com o desempenho de todo o sistema.
Um corolário para este argumento é que a doutrina da localização de função sofreu a falta de uma ciência amadurecida do comportamento, uma falta que, em grande parte, ainda persiste. Vários aspectos do comportamento são muito difíceis de descrever e medir objetivamente. Para estudar inter-relações cérebro- comportamento localizáveis devemos ser capazes de identificar de uma maneira cientificamente reconhecível as propriedades do comportamento que estamos tentando explicar.
Uma razão final e talvez a longo prazo mais importante que causou a demora para aceitar a doutrina da localização é a lentidão com que avança nosso conhecimento da relação entre a anatomia do cérebro e o comportamento. O cérebro é imensamente complexo, e a estrutura e função de muitas de suas partes são ainda pobremente compreendidas. O entusiasmo nas ciências neurais nos dias atuais reside na convicção de que as ferramentas estão por fim à mão para explorar o órgão da mente, e com o entusiasmo vem o otimismo de que as bases biológicas da função mental provarão ser compreensíveis.
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